Descobri o Budismo pela televisão. A primeira prática Budista que encontrei na
internet foi o Tonglen. Já não sei onde vi a prática descrita. Lembro de uma
frase do género “inspirar o sofrimento, na forma de uma nuvem negra,
transformar no coração a nuvem negra em luz branca e expirar raios de luz e
compaixão”. Pratiquei isto durante algum tempo. Todos os dias chorava, umas
vezes mais outras menos. Por vezes chorava à gargalhada. Depois sentia-me
sereno, compassivo, bem. Um membro da família humana, da família de todos os
seres, no fundo na mesma situação, todos juntos.
Nove anos depois, volto à mesma prática. Só me questiono
porque não continuei com ela. Diz-se que o Buda deu 84 mil ensinamentos, cada
um apropriado para quem o dirigia. A mesma prática não tem que resultar para
todas as pessoas. Temos que experimentar várias.
Existem muitas maneiras de fazer Tonglen e passo a descrever
como o faço. Começo por focar na perda. Digo para mim próprio que, no momento
em que aqui estou sentado, existem pessoas em sofrimento extremo. Depois uso a
imaginação. Posso visualizar uma mãe que chora em desespero com o filho morto
por subnutrição nos braços. Aqui há que ser criativo. Aqui o que importa é
escolher algo que nos toque. Em pouco tempo correm-me as lágrimas. O coração
acorda. E logo vejo que, tal como aquela mãe, todos estamos sujeitos a
sofrimentos extremos. Nisso somos todos iguais. Todos sofremos, neste momento.
E foco na aspiração genuína em aliviar o sofrimento de todos os seres,
incluindo eu próprio. Inspiro com o desejo de remover o sofrimento e expiro
enviando alívio para o coração dos seres que sofrem, algumas vezes. E de algum
modo karuna (compaixão) é alegria. Karuna surge e é alegria pura. Não sei bem
como esta prática funciona mas sinto que me torna mais consciente da realidade,
do sofrimento dos seres, e ao mesmo tempo mais feliz, mais ligado a todos (pequeno video com indicações para esta prática: tonglen).
Considero o Budismo Theravada uma excelente fonte. Parece
conter ensinamentos do Buda de base, aceites por todas as escolas budistas. Há
no entanto, a meu ver, um enfase excessivo no ideal monástico e no sofrimento. Parece
que para ser um budista a sério é preciso ir para uma caverna na Tailândia
meditar do nascer ao por do sol. Estou a exagerar, mas há realmente o perigo de
se criarem metas e expectativas pouco realistas para quem vive neste mundo. E
assim em vez de o budismo ajudar as pessoas a libertarem-se do sofrimento,
torna-as mais infelizes.
O Zen, por outro lado, enfatiza muito a prática em tudo
aquilo que fazemos. Estar onde estamos, ser quem somos, sem reservas. Sente-se
uma alegria, uma iluminação em cada instante em que se está no momento presente.
No entanto há todos aqueles rituais japoneses, que não fazem grande sentido por
aqui. Faz-me lembrar dos tempos em que praticava karate. Não é que me
incomodem, pouco me importa se baixo a cabeça ou dou apertos de mão. Eu gosto
mesmo é de abraços.
O enfase na compaixão, do Budismo Tibetano, pode ser
fundamental. Quer o Zen, quer o Theravada, podem deixar-nos muito na cabeça. E
no fundo o que realmente importa é o modo como sentimos o mundo. Eu sou
matemático, estou farto de ter confirmações de que o raciocínio deste meu cérebro,
funciona muito bem. Mas isso por si só não me serve de nada. Se o coração
desliga, nada funciona. A roda do dharma não roda.
Concluindo, ao contrário das ideias batidas de que temos que
selecionar uma tradição ou mestre e praticar de acordo, defendo exatamente o
contrário. Temos que ter a coragem de não ficarmos bitolados por uma perspetiva,
ou estrutura de prática, e sermos capazes de reconhecer o valor de todas as
tradições, e perceber a verdade que existe em todas as pessoas, em todos os
seres, em todas as coisas.
Cada vez mais acredito numa espiritualidade humana, em círculos
de meditação e partilha não centrados em deuses, heróis ou mestres, onde todos
enriquecem com a prática de meditação conjunta e troca de ideias. Reconhecendo
naturalmente o valor das pessoas que se dedicam exclusivamente às práticas
espirituais e as vantagens do contacto com essas pessoas, defendo que, em última
instância, tem que ser cada pessoa a decidir o que pratica e como pratica. Mais,
temos que ser criativos nas nossas práticas, temos que experimentar e ir vendo
o que funciona e o que não funciona. Mais ainda, temos que abandonar as
práticas que já não funcionam e troca-las por outras. E quando funciona? Se
funciona já. A meditação tem que fazer sentido em si mesma. É preciso acabar
com o mito de que temos que esperar anos por resultados. Sentamos-mos sem
esperar resultados e temos resultados imediatos, enquanto estamos sentados e,
quando nos levantamos.
A espiritualidade é uma área diferente de todas as outras. Embora
todos aprendamos uns com os outros, ninguém nos pode dizer o que fazer. Não
acredito em mestres, neste sentido. Mas acredito na amizade. São os amigos que
melhor podem funcionar como espelhos. Pode até ser que, tal como nós, tenham
uma perspetiva fixa do que somos, mas não será certamente a mesma que a nossa.
E sempre é melhor que a de um suposto mestre telepata que nos dá uns palpites
sem sequer nos conhecer, e que na verdade nunca saberemos se são do dharma ou de
mais um grande ego.
Removendo toda a estrutura, saindo da zona de conforto em
cada momento, brincando com a mente, experimentando, deixando o caos dentro de
nós. Requer coragem… Alternativa: junta-te a um rebanho e segue o pastor.
Estou muito feliz com o grupo de meditação de Aveiro. É um
grupo heterogéneo, rico, bem-humorado, leve. As pessoas meditam, conversam sobre
meditação e budismo, e também sobre outras coisas. E todos crescem em conjunto.
Assim é fácil sentir gratidão.